O garoto Mateus da Silva, 8 anos, era, até anteontem, só mais um menino com a camisa do Vitória nas ruas de Salvador, vendendo balas na praça de alimentação de um shopping, após ser descoberto por conta de uma desastrosa tentativa da segurança do estabelecimento de impedir que um rapaz lhe pagasse um almoço.
Mateus foi descoberto, da maneira mais trágica possível. Foi pego na frente do shopping, sem haver para isso o consentimento de seus pais ou de qualquer outro parente ou adulto responsável, acompanhado de outros dois menores de 14 anos, enfiado num carro de reportagem e levado para uma emissora de TV, onde se deu o início da espetacularização de sua vida. Com direito a, no fim do programa, a apresentadora anunciar: Mateus é nosso e ninguém tira.
O Esporte Clube Vitória orquestradamente anunciou junto à aparição do menino na TV, e também sem nenhuma consulta ou consentimento prévio dos pais, que vai “adotar o garoto”. Mas, como o clube pode anunciar um compromisso com uma criança de 8 anos sem ao menos saber se os pais autorizam? Como pode a coordenadora do projeto social “Vitória Cidadania” gravar e divulgar vídeo de autopromoção com a imagem do garoto?
CASADA E COM FILHO AOS 14 ANOS
O Esporte Clube Vitória assumiu uma responsabilidade gigantesca e publicamente com o menino. A pergunta é: como vai cumprir o que prometeu na TV? Hoje mesmo, 13 de junho, quarta-feira, segundo informações que me chegam, o projeto Vitória Cidadania entrará de férias. Quem, então, irá receber e atender o menino? Como irão dar conta de, em plenas férias, recebê-lo? Ou criança, só porque vive nas ruas vendendo bala não sonha imediatamente com o que lhe prometem diante dos holofotes?
Acolher uma criança em situação como a do Mateus, vai muito além de meras declarações e da midiatização ou promoção de marketing de um clube, fosse qual fosse. Poderia ser o Bahia, o Jacuípense ou o Real Madrid. O menino vive sob seríssimas condições de precariedade. E sim, eu sei do que estou falando e porque estou falando. A irmã, de apenas 14 anos, é CASADA com um garoto de 14 anos e ambos JÁ têm uma filha de 5 meses. A estrutura dessa família é completamente desestruturada e precisa, antes, de muito mais do que dirigente de futebol anunciando no calor dos acontecimentos que vai fazer isso e aquilo, sem ter a menor ideia do que circunda a vida familiar do menino. Ou a falta dessa vida.
DEZENAS E DEZENAS DE MATEUS
Agora perguntemos a Ricardo David, do Vitória, após o anúncio de que vai adotar Mateus: já que não é uma ação de marketing, por que o clube não atende outras crianças na mesma situação de Mateus e por que, ao anunciar isso, o fez num programa de TV e não em uma iniciativa interna?
Se qualquer dirigente ou assistente social dos clubes observarem a cada ponto de ônibus nas imediações do mesmo shopping e nas sinaleiras próximas, verão todas as horas do dia que há dezenas e dezenas de outros Mateus, de crianças vestindo camisas de times doadas sabe-se lá por quem, imensas em seus corpos esquálidos de fome, seja vendendo bala, limpando para-brisas, ou pedindo dinheiro.
PIXOTE E SEUS OITO TIROS
Ao anunciar a adoção de Mateus o Vitória pode, é claro, transformar a vida do menino. E tomara que este seja o final dessa história, um final feliz. Mas gatos escaldados que somos dessas ações, temos medo da água fria do marketing envolvendo crianças pobres que são catapultadas à fama tão imediata quanto efêmera pelos holofotes da audiência midiática. O exemplo brasileiro mais famoso é Pixote, protagonista de um dos mais famosos filmes nacionais, de Hector Babenco.
No filme, de 1981 (Pixote, a lei do mais fraco), o garoto que interpretava a personagem era Fernando Ramos da Silva, um menino abandonando na vida real e de verdade. Ficou famosíssimo, mamou no peito de Marília Pera, que interpretava uma prostituta no filme, pisou em tapetes vermelhos no grand monde dos festivais de cinema internacionais. Mas a fama passou rapidíssimo, Fernando voltou para as ruas e sete anos após o lançamento do filme, aos 19 anos, morreu na rua, envolvido com tudo o que a gente imagina e que faz parte da rotina desses meninos: violência, abuso, exploração, droga, tráfico, armas. Quem matou Fernando? Quem matou Pixote? A Policia Militar de São Paulo, com oito tiros.
MARKETAGEM
Um grupo de pessoas de movimentos sociais ligados à infância e de combate ao racismo já ligou o radar. Vão acompanhar essa “adoção” de Mateus, seja pelo Vitória ou por veículos de comunicação, e garantem que não vão deixar o menino ser transformado em um Pixote de Salvador, pois já viram muitas vezes o mesmo filme e, se não é possível mudar o curso da história de vida dos milhões de Mateus Brasil afora, pelo menos pela vida de um deles haverá vigilância e cobrança às promessas feitas ao sabor da marketagem oportunista.
*Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA